Documentário “7 denúncias” faz leitura ideológica da pandemia

 Documentário “7 denúncias” faz leitura ideológica da pandemia

O vídeo denuncia a adoção de medidas autoritárias no contexto da crise sanitária do novo coronavírus

O Nujoc Checagem recebeu denúncia por meio do aplicativo Eu Fiscalizo, da Fiocruz, sobre o documentário intitulado “7 Denúncias: as consequências do caso Covid-19”. Produzido pelo grupo Brasil Paralelo, que reúne intelectuais e ativistas ligados aos ideais do liberalismo, trata-se de um material de cunho opinativo e interpretativo, que apresenta um viés específico sobre a pandemia.

Nesse sentido, não se pode afirmar de maneira categórica que no conjunto se trate de fake news: é mais acertado dizer que o documentário defende um ponto de vista específico, e faz a leitura dos fatos a partir desse ponto. O tom geral é a denúncia do cerceamento das liberdades individuais e o avanço do totalitarismo no contexto da pandemia. Você pode assistir ao vídeo na íntegra aqui.

Narrativa – O documentário é construído com depoimentos de estudiosos e políticos, cenas de arquivo e imagens recentes feitas pela equipe de produção. Um narrador faz a interpretação dos fatos, que são organizados em um total de sete segmentos, cada um dedicado a uma denúncia, como refere o título.

O tom da narrativa é dado já no início, com imagens que contrastam o colorido das cidades no período pré-pandemia com o cinza das imagens das capitais desertas durante a quarentena, dentro e fora do Brasil.

Documentário “7 Denúncias”: o Estado como opressor do indivíduo. Imagem: Reprodução Youtube

Embora imite o tom da narrativa jornalística, a intepretação dos fatos apresentada pelo documentário nem sempre corresponde à verdade factual até agora verificada. No prólogo, o vídeo traz dados sobre morte por catástrofes no século passado, numa linha do tempo mostrando números: da I Guerra Mundial: 20 milhões; Revolução Russa: 20 a 60 milhões; Gripe Espanhola em 1918: 50 milhões; revoluções: 80 milhões; Aids: 2,8 milhões por ano. Os números serviriam para mostrar que a crise sanitária da Covid-19 seria um mal menor comparado a outras que assolaram a humanidade na história recente.

A conclusão a que induz o documentário não se sustenta, já que compara eventos em si não sujeitos a comparação, como guerras, pandemias e a opressão de regimes políticos. O risco maior desse raciocínio é minimizar o número de mortos pela Covid-19, que já passa de meio milhão de vítimas no mundo todo em apenas seis meses.

Na sequência do vídeo são apresentadas as sete denúncias, assim nomeadas: Denúncia 1: Bem comum versus bem individual; 2: A autoridade científica do governo; 3: As consequências das decisões; 4: Oportunismo político; 5: Controle da vida privada; 6: Controle de opinião; e Denúncia 7: O poder das instituições supranacionais.

O que todas essas sete denúncias têm em comum é o fato de destacarem a opressão do indivíduo pelo Estado em períodos de crise como o da pandemia atual. Essa opressão se manifestaria por exemplo na maneira como a cloroquina foi proibida pela Organização Mundial da Saúde.

A cloroquina não tem efeito comprovado contra a Covid-19, conforme demonstram os estudos mais recentes, que você pode conferir nesta notícia aqui. A OMS apenas seguiu as recomendações dos cientistas ao mudar de orientação no caso do medicamento.

Há também informações verídicas no material, como a da retratação da revista científica The Lancet sobre estudo que descartava a validade da cloroquina como medicação contra a Covid-19. Mas, no contexto em que é apresentada, essa informação parece ter por finalidade apenas desacreditar de todo o trabalho da ciência, dando a impressão que a verdade é só uma questão de ponto de vista.

O progresso científico é lento e sujeito a erros. A própria retratação da revista é um exemplo de como a humildade deve guiar o trabalho científico. Se há erro, deve-se admiti-lo e recomeçar até que se acerte. Não se trata apenas de ponto de vista, mas sobretudo de reconhecer a realidade e os fatos.

Outro exemplo utilizado no documentário para provar o ponto de vista defendido seria a cobertura da “grande mídia” a favor de medidas restritivas como o uso de máscaras e o lockdown. Isso mostraria uma rede de interesses que contribuiria em última análise para calar o cidadão comum e, no limite, instaurar um regime de opressão em nível mundial.

Os interesses da grande mídia não formam um bloco coeso nem estão cegamente submetidos a algum grupo oculto. O jogo de forças entre grupos antagônicos nas sociedades democráticas impede a coesão do discurso da mídia, que também presta contas à opinião pública, e por isso deve ter compromisso com a verdade factual, ao menos no âmbito do jornalismo. Aqui como em vários outros trechos, a narrativa do documentário incide no tom das teorias conspiratórias, muito comum no contexto da pandemia, teorias que seduzem porque oferecem culpados para eventos sobre os quais não se tem controle.

Culpados – No documentário, os culpados são o Estado como entidade burocrática, os governadores que não apoiam o governo Bolsonaro, a comunidade científica, a Organização Mundial da Saúde, a União Europeia, entre outros.

Tudo isso faz do documentário “7 Denúncias” muito mais uma peça ideológica do que de fato um documentário jornalístico. A montagem e a edição do material colaboram para que as atitudes dos inimigos do atual governo sejam quase sempre intercaladas com imagens de ditadores sanguinários, como Hitler e Stalin. Essa é uma das técnicas que o vídeo usa, emprestadas da publicidade, para incutir aceitação de mensagens com fins ideológicos, pela repetição e pela associação.

Para avançar na discussão objetiva e científica, é necessário ouvir as versões discrepantes e admitir com humildade o tanto que ainda se desconhece sobre o novo coronavírus e as melhores formas de lidar com as consequências da pandemia. Aqui você confere uma checagem que a equipe do Nujoc fez sobre outro documentário que disseminou desinformação sobre o novo coronavírus.

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