Desinformação nas ciências e nas notícias: mais do que denunciar, é preciso prenunciar

 Desinformação nas ciências e nas notícias: mais do que denunciar, é preciso prenunciar

Este artigo é uma publicação original da revista Comciência. Para acessar, clique aqui.

Por Alexandre Brasil Fonseca

Tu vens, tu vens
Eu já escuto os teus sinais
Alceu Valença

Não havendo profecia, o povo perece
Provérbios 29:18

Somente podem ser proféticos os que anunciam e denunciam, comprometidos permanentemente num processo radical de transformação do mundo.
Paulo Freire

Toda a notícia é um anúncio que visa divulgar algo publicamente. Boa parte da vida humana está associada com essa prática de comunicação, tanto no cotidiano de nossas casas, entre amigos e familiares, como também nas tragédias gregas ou nos Adinkras feitos em Gana ou Costa do Marfim. Para as religiões, ideologias e filosofias anunciar é central. Na sociedade contemporânea, ainda mais graças às mídias digitais, isso se tornou algo recorrente, amplo, rápido e acessível.

Neste artigo meu objetivo é compartilhar com o leitor brasileiro uma forma que tem sido adotada para se pensar esse universo da comunicação na atualidade, especialmente em relação ao enfrentamento à disseminação da desinformação. Impressiona a forma como cada vez mais é possível identificar grupos e pessoas envolvidos neste tema, tanto na produção como na denúncia. São três as áreas profissionais que têm dado maior atenção à essa realidade: jornalistas, educadores e cientistas.

A perspectiva que pretendo apresentar neste texto de forma introdutória tem sido chamada de prebunking e ela consiste em afirmar que a refutação de mentiras veiculadas, seja nas chamadas fake news ou na pseudociência, ocorra de forma preventiva. A fundamentação é desenvolvida a partir da Teoria da Inoculação e a ideia é que atuar de forma passiva, buscando reparar notícias após a sua disseminação é algo pouco efetivo. Com isso, o centro da checagem de notícias é muito mais a mentira do que o fato em si, situação que não parece ser efetiva. Assim no lugar de uma refutação reativa, o debunking, é proposto a refutação preventiva, o prebunking. Este texto resume-se, portanto, a afirmar que é melhor prenunciar do que denunciar a desinformação, isso tanto no que se refere à divulgação científica, como também na checagem de notícias.

Inicialmente é feita uma contextualização sobre como a busca de prenunciar situações é uma marca central no atual sistema econômico, o qual já foi definido como capitalismo de plataforma[i] ou capitalismo de vigilância[ii]. Há hoje uma centralidade de conglomerados econômicos dedicados à comunicação digital e que possuem na capacidade de predição um de seus principais produtos. Essa capacidade envolve uma ampla e sólida base de dados que vem sendo reunidas sobre cada um de nós e que, a partir dela, investe na sugestão de um conjunto de emoções e sentimentos que caracterizam variados perfis.

Em seguida são apresentados alguns aspectos que devem ser considerados para o enfrentamento à desinformação. É preciso ir além dos fatos, ir além da exposição racional e ordenada de mentiras e imprecisões. É fundamental a adoção de procedimentos antecipados e preventivos que envolvam uma discussão sobre valores e que forneçam elementos que informem as pessoas para que tenham conhecimento sobre os mecanismos, estratégias e processos que envolvem a disseminação de mentiras. Prenunciar a desinformação é preciso.

Plataformas, vigilância e a centralidade da predição

Um efeito intimamente ligado à necessidade humana de comunicação é o estabelecimento de um mercado economicamente motivado em torno do anúncio, a publicidade, em seu sentido amplo. O processo de veiculação de notícias pela imprensa implica em algum tipo de venda, seja por meio de assinaturas, patrocínios ou propagandas. Alguns dizem que elas também podem ser vendidas antes de sua produção, visando atender interesses políticos e econômicos. Hoje em dia tudo se publica, se divulga, se curte ou compartilha. Cliques que acabam também por monetizar essas práticas como nunca imaginado.

Foi uma realidade similar que impôs, no passado, todo um código de ética e a busca de procedimentos transparentes que regulavam a formação dos jornalistas e que visavam desassociar a notícia do anúncio.  Foi preciso uma ação firme e permanente para que isso ocorresse, nem sempre com sucesso. O foco era a busca por objetividade e alguma neutralidade visando a não-associação da notícia com a propaganda. O que o campo da comunicação elaborou durante décadas praticamente foi abandonado nos dias de hoje em meio às plataformas digitais, que ainda agregaram a seu produto o acompanhamento em “tempo real”.

O que muda no século 21 é que os principais meios de comunicação, os espaços   que detêm os anúncios, não são mais as empresas de comunicação, mas sim as plataformas com seus sites e aplicativos. A informação está ao alcance das mãos com os smartphones representando o maior tempo de tela das pessoas e sua principal fonte de informações. Agora o dinheiro circula por meio de “Ads”, abreviatura de “advertisement”, que atualizam a velha e conhecida publicidade, sendo que agora ela acontece por meio de simples cliques que fazem o dinheiro circular numa intricada relação com novas métricas e que também envolve cookies, algoritmos e bots.

Atualmente há um grande volume de dinheiro que passa a transitar a partir de pequenos equipamentos confortavelmente posicionados na palma da mão do usuário-cliente. Vivemos diante de conglomerados que se especializaram no campo dos big data e que têm como principal produto a oferecer, numa fase ainda mais violenta e desumanizadora do capitalismo, a capacidade de predição. Esse é o principal produto desse novo capitalismo e é para isso que precisam que os usuários-clientes-produtos permaneçam o máximo de tempo possível em suas páginas, afinal a partir dos dados que reúnem de cada um de nós é que oferecem melhor acurácia.

É isso que as grandes empresas das mídias digitais, que atualmente são as que possuem maior valor de mercado no mundo, como a Alphabet Inc., dona do Google, e o Facebook Inc. tem a oferecer. Elas preveem o que você quer, elas se adiantam e daí podem oferecer uma vitrine personalizada para os anunciantes. É assim que elas se consolidaram e é assim que elas mantêm a sua atratividade, graças a um intricado e amplo conjunto de dados que armazenam de cada perfil cadastrado em seus servidores e que fazem buscam, escrevem mensagens, arquivam fotos, oferecem o rastreamento de seus trajetos e sua geolocalização, além das emoções e interesses que explicitam nos vídeos, mensagens e imagens que curtem e compartilham.

Isso exige suporte de dados, resfriamento a água de grandes máquinas e alto consumo de energia elétrica. Numa busca no Google pode-se encontrar a informação de que em 2008 o volume de dados que o buscador processava diariamente era de 20 petabytes. Para se ter uma ideia do que isso representa, uma matéria da Superinteressante afirma – nem suspeito com base em que[iii] – que tudo o que foi escrito pela humanidade, em todas as línguas, pode ser arquivado em 50 petabytes (o que equivale a 50 milhões de Gigabytes). A coleção digital da maior biblioteca do mundo, a do Congresso Americano, tinha em 2018 um acervo de 410 milhões arquivos individuais comprimidos em 16 petabytes de textos, imagens e vídeos[iv].

Isso requer muita engenharia, matemática e estatística, mas também inclui preocupações e pesquisas que envolvem tanto as áreas da psicologia, como também da antropologia, artes e filosofia. Muito disso está presente no campo do “UX Design”, área em que é possível perceber um pouco melhor a abrangência do que está em jogo. Porém temos um “resíduo”, uma consequência, dessa nova indústria que é a desinformação e que ficou popularizado com o termo fake news. Da mesma forma que a indústria de petróleo polui o meio ambiente, a indústria digital polui a sociedade com a disseminação da desinformação. É uma necessidade que alimenta a sua existência, pois aumenta a adesão e a permanência dos usuários nas plataformas. Em dias de pandemia isso se mostrou ainda mais grave e preocupante, levando a UNESCO a cunhar um novo termo: desinfodemia[v].

As implicações dessa realidade têm ocasionado discussões nos poderes da república. Enquanto o Executivo parece optar pela produção da desinformação, vendo o banimento e a exclusão de contas e postagens, também temos a identificação do chamado “Gabinete do Ódio”, espaço voltado para a produção de conteúdo mentiroso com fins políticos-persecutórios e econômicos. Além dessa central de produção de materiais realizada por servidores públicos nomeados para cargos de confiança, há indícios de financiamento com recursos públicos, via verbas publicitários, para grupos também atuantes nesta prática.

Já o Judiciário e o Legislativo buscam estabelecer regras e procedimentos, com alguma polêmica e que merecem o devido acompanhamento da sociedade, no sentido de regular minimamente a desinformação tão presente no mundo digital como tal que atualmente desfrutamos no Brasil. O ponto é que essa atuação parece errar na dose e na proposta ao ainda buscar estratégias para combater a desinformação após a sua veiculação. Um grupo de pesquisadores liderados pelo psicólogo Sander van der Linden[vi], da Universidade de Cambridge, recomendaram a uma comissão de inquérito no legislativo britânico que “o Parlamento não deveria se concentrar em ‘corrigir’ a desinformação após o ‘fato’, mas sim em evitar que ela se enraíze em primeiro lugar”.

Vimos que diante de uma pandemia se optou por uma atuação errática por parte do poder público, não tendo ocorrida uma mínima articulação entre as esferas federal, estadual e municipal. O Brasil não vê números piores graças à existência do SUS, mas lamentavelmente estamos diante de um alto número de mortes evitáveis. Além da falta de coordenação por parte do governo federal, há toda uma responsabilidade que precisa ser atribuída ao presidente da República em razão da condução errática, do não exemplo, do descaso para com o Ministério da Saúde, além de sua ativa disseminação de mentiras.

Ocampo da divulgação científica também se vê diante de um grande desafio na atual situação em que há um enorme conjunto de informações equivocadas e conflitantes. Vemos a existência de alguns profissionais de saúde e cientistas que parecem desconsiderar consensos e posturas baseadas em evidências ao lado do aumento de pessoas que adotam o negacionismo científico. Assim, junto às temáticas climáticas e ambientais, vemos agora um conjunto de afirmações relacionadas à virologia ou epidemiologia que sofrem os efeitos da desinfodemia.

No final deste ano há a expectativa de que ocorra um novo processo eleitoral no Brasil, para o qual se vislumbra novamente o intenso uso da desinformação com foco na questão político-eleitoral. É importante considerar com atenção as propostas que um recente campo de pesquisa que reúne a tecnologia com a psicologia cognitiva tem feito. Inclusive porque tenho a impressão de que estas vão ao encontro daquilo que as grandes empresas atuantes nas mídias digitais têm feito. Como disse acima, o seu principal produto é a predição, visando o ganho financeiro ou político eles vendem a possibilidade tanto de prever, como também, mudar comportamentos. Essa antecipação é central é há algo importante a ser aprendido nesse ponto por aqueles que se dedicam à checagem de notícias ou a divulgação científica.

Desinformação, checagem de notícias e divulgação científica: denunciar e prenunciar

Todo o ecossistema de informação que transita pela Internet e pelas redes sociais envolve o anúncio e mais recentemente vimos o surgimento de uma nova área de atuação que representa a reinvenção da prática jornalística por meio da prática de checagem de notícias. Grupos e empresas têm se especializado em denunciar notícias mentirosas, em apontar o quão enganoso ou descontextualizada é uma informação veiculada por um site ou em um pronunciamento de uma figura pública.

Lamentavelmente vemos um crescimento significativo na veiculação da desinformação ou de notícias produzidas de forma equivocada, especialmente no campo da divulgação científica, num somatório de deturpações ou erros intencionais. Para o enfrentamento deste desafio o caminho que tem sido trilhado é o da denúncia, do desmascaramento. Assim diante de uma afirmação absurda que ganha evidência, vemos como ato contínuo ela sendo re-visitada por especialistas que se dedicarão a explicar o equívoco, isso a partir das bases e condições que a própria notícia mentirosa estabeleceu. Dessa forma, vemos um significativo dispêndio de tempo e energia para refutar coisas absurdas ou inexistentes com a manutenção dessas em evidência.

Assim visitar um site de checagem de notícias acaba por representar quase uma viagem a um mundo de horrores, vindo à mente a reflexão de o quanto é inacreditável ter que desmentir algumas das afirmações que por ali transitam e que são completamente estapafúrdias e totalmente mentirosas. Um exemplo emblemático disso nos dias de hoje é o fato de que vários programas de TV, matérias de revistas e jornais têm se dedicado a afirmar, e comprovar (!), que a terra não é plana. Questão que acabou por merecer também generosos espaços em programas de humor.

Assim, enquanto nos dedicarmos a denúncia sempre estaremos em desvantagem, a um passo atrás, e, ao mesmo tempo, estaremos dando um patamar de legitimidade a questões despropositadas. O que fazer? A opção de ignorar esse universo em dias de tamanha evidência e alcance, muita das vezes protegidos pela criptografia de aplicativos como o WhatsApp, também parece não ser razoável. Outro problema que a literatura aponta para essa refutação posterior é o chamado “backfire effect”[vii], situação em que a ação que visava desmentir uma notícia, acaba por reafirmá-la. Outro termo para ilustrar essa situação é “backlash” que tem a ideia de uma forte reação.

Paulo Freire[viii] afirmava a necessidade da dialética anúncio-denúncia na prática educativa. Um ponto importante era o enfretamento das mentiras que tinham como foco o prejuízo das classes subalternas e a manutenção das estruturas de dominação e de exploração. A conscientização demandava um processo educativo que dialogava com as múltiplas verdades, apontando soluções e anúncios possíveis, mas também denunciando as situações que acabavam por prejudicar as pessoas.

Uma discussão recente que surge ao se pensar no enfrentamento à desinformação tem sido forjada a partir das reflexões de grupos envolvidos com a tecnocognição[ix]. Sua origem pode ser identificada entre autores dedicados à temática da divulgação no campo das ciências climáticas, envolvendo toda uma preocupação em oferecer o melhor desmascaramento possível as muitas deturpações veiculadas nesse tema[x]. Assim, uma discussão recorrente para esses autores era a de como melhor fazer o debunking. Refletiam, assim, se seria mais apropriado a denúncia das notícias falsas se dar antes delas serem veiculadas, imediatamente após ou somente quando elas já estivessem amplamente disseminadas.

Em dias de pandemia entender que a prevenção poderia ser um melhor remédio fica mais evidente. Considerando que a “cura” diante de crenças mobilizadas pela desinformação parece ser algo bem improvável, o foco passa a ser o estabelecimento de processos educativos que poderiam providenciar respostas imunizadoras. Assim a refutação deveria se dar de maneira preventiva e não reativa[xi]. Essas discussões envolvem tanto a compreensão da importância dos valores[xii], como da confiança e de que a refutação deve ir além da discussão dos fatos. Nas disputas que envolvem a desinformação, há lógicas e visões de mundo que também precisam ser refutadas.

Há uma questão importante que Zollo e colaboradores[xiii] ponderam: “As nossas descobertas sugerem que o principal problema por detrás da desinformação é o conservadorismo e não a credulidade”. É importante considerar que a questão que está posta não se concentra simplesmente na dimensão factual; há todo um conjunto de relações, crenças, valores e emoções – isso ao lado de relações de confiança e de interesses políticos e financeiros – que movimentam e dão sustentação a todo um sistema de desinformação.

Diante dessa percepção, o desafio que se impõe assume novas proporções, mais responsabilidades e respostas mais sofisticadas. As estratégias a serem assumidas em uma sociedade eivada pela presença de notícias falsas precisa ir além de uma ação reativa que geralmente não responde e que, muitas das vezes, acaba por conferir legitimidade a mentiras. O foco precisa ser para além da questão factual, pois a tomada de decisões leva em consideração também os valores, daí é central, por exemplo, que a divulgação científica e inciativas de checagem de notícias abordem tantos os fatos como os valores em sua abordagem[xiv].

A fundamentação para essa perspectiva tem sido forjada a partir do trabalho de McGuire[xv], psicólogo responsável pela Teoria da Inoculação. Basicamente temos o uso na psicologia de conceitos e valores da biologia relacionados à vacinação. A exposição preventiva a pequenas doses de desinformação seria suficiente para promover uma imunidade e daí a proposta desses autores passa pelo desenvolvimento de ações educativas, que podem ser realizadas tanto por meio de cursos formais[xvi], como também pela disponibilização de jogos eletrônicos[xvii]. Ações que, inclusive, poderiam acabar estabelecendo com o tempo uma espécie de “imunidade de rebanho” contra a desinformação na sociedade.

Algo que me parece ter relativo consenso é a importância de mudarmos a postura de partir da mentira para iniciar um processo de comunicação. No modelo de curso desenvolvido por Cook, ele argumenta que sempre parte do fato, da realidade, para então apresentar o que ele chama de mito (a desinformação) de uma forma pontual e resumida, concluído com a discussão de como, diante do fato, se dá a construção de uma específica falácia relacionado ao fato inicial. Aqui o centro do seu discurso é a verdade e não a mentira. Essa busca por se antecipar a ataques desinformativos parece ser algo central, como demonstra estudos na área da ciência política[xviii]. A questão que se impõe é como se antecipar a uma fake news?

Aqui temos uma questão a ponderar. Primeiramente é importante lembrar que geralmente as mentiras veiculadas pelas mídias digitais se repetem um pouco no conteúdo e sempre na estrutura e no formato. Com isso o trabalho de uma pessoa dedicada à checagem de notícias, divulgação científica ou a refutar desinformação seria o de produzir materiais para “inocular” pessoas, as vacinas. Assim à essa pessoa cabe demonstrar evidências que caracterizam a desinformação, investindo nos mecanismos e nas lógicas que estão subjacentes a criação e a disseminação dessas. Isso sempre se repete. Essa é, por exemplo, a proposta do jogo eletrônico Bad News, que de forma lúdica busca demostrar os processos envolvidos, tanto na criação como na disseminação de mentiras pelas redes sociais[xix].

Nessa discussão interessa-nos observar uma proposta que identifiquei como sendo primeiramente utilizada por John Cook[xx] em sua tese de doutorado em filosofia. Cook é formado em física, tem desenvolvido pesquisas na área de ciência cognitiva e é professor no Center for Climate Change Communication da George Mason University. Em sua tese sobre ciência do clima e divulgação científica ele propõe a realização do que chamou de prebunking para o enfrentamento das mentiras relacionadas às discussões sobre mudanças climáticas em um tópico que ele intitulou como: “Inoculation: Prebunking Is the New Debunking”.

Além dele e alguns colegas que atuam na Austrália, também foi identificado um outro grupo de acadêmicos que se dedicam a pensar a questão da inoculação para o enfrentamento da desinformação sediado na Inglaterra e liderado pelo psicólogo Sander van der Linden. Eles possuem textos da mesma época que defendem a prática do prebunking, sendo que há também uma carta sobre inoculação e desinformação que publicaram de forma conjunta na Science em 2017[xxi]. Parece que esses dois grupos de autores têm trabalhado com algum diálogo a partir da questão da inoculação, voltados inicialmente para a temática da divulgação científica e para as questões ambientais[xxii]. Certamente a pandemia pode representar uma nova frente a ser considerada nessa perspectiva.

Prebunking é uma palavra que foi criada como uma resposta-complemento para o debunking, o qual pode ser traduzido por desmascaramento, desmistificação ou denúncia. Algo que é muito bem exemplificado na prática de checagem de notícias. Hoje são várias as agências, veículos e profissionais dedicados a evitar a disseminação, o contágio, das mentiras, as quais muitas das vezes possuem fins políticos e/ou econômicos. Para tanto a opção passa por uma narrativa que se preocupa em demonstrar a verdade factual e o quanto isso não é considerado. Esse foco nos aspectos factuais, junto a necessidade de menção, numa espécie de “afirmação” das mentiras, pode acabar tendo um efeito contrário. Reforçado pelo fato de que se exige que a pessoa reconheça que algo em que acreditou e disseminou era uma mentira. Isso não é confortável e ela poderá preferir permanecer no erro, o tal efeito do “tiro sair pela culatra” (backfire effect).

Da parte dos que atuam nesse campo a prática acaba sendo passiva, numa eterna espera pela fake news do momento para então dedicar-se a demonstrar as mentiras e deturpações geralmente relacionadas à temporalidade ou ao contexto. Isso geralmente é feito por meio de argumentos objetivos, sendo buscados fatos que subsidiem a percepção dos equívocos de uma forma cuidadosamente embasada. Isso é muito comum na checagem de notícias, situação que acaba por deixar a mentira como um aspecto central no processo comunicativo. Ela é o foco e é quem determina as pautas a serem abordadas, nesse processo de refutação reativa.

O que esses autores têm sugerido é que seria possível a adoção de uma refutação preventiva, que denominam de prebunking e que eles têm demonstrado possuir melhores resultados. Aqui o foco não é mais o fato a ser refutado, pois este ainda não está definido, mas sim a explicitação das estratégias, das motivações, dos valores, da retórica, da estrutura, dos aspectos políticos, econômicos e de outros elementos que caracterizam a desinformação. No caso específico da pandemia, por exemplo, a UNESCO desenvolveu documentos em que tipificou tipos e modelos de desinfodemia que se alastram mundo afora no momento atual. Fazer com que mais pessoas conheçam essas modalidades que foram identificadas; fazer com que tenham contatos com esses formatos e conteúdo, acaba por representar uma forma de “inocular” as pessoas contra esses tipos de mentiras.

Ecker[xxiii] vê o prebunking como uma importante ferramenta para a inoculação das pessoas, contribuindo de forma mais efetiva para o enfrentamento das fake news e de visões distorcidas relacionadas a divulgação científica no momento em que se dedica a expor “as táticas e as estratégias falaciosas de argumentação utilizadas por pessoas que espalham desinformação”.

Em português me parece que não é preciso a criação de uma nova palavra, como foi feito no caso da língua inglesa. Falo isso porque denunciar é uma das traduções possíveis para o verbo debunk. Assim é possível pensarmos em outro verbo, não muito usado, que contempla adequadamente a ideia de prebunking e que tem a mesma origem latina, relacionada ao anúncio, da palavra denúncia. É possível pensar que o enfrentamento à desinformação pode ser feito por meio de prenunciar as mentiras e o ecossistema de informações que alimenta as fake news.

O educador brasileiro Paulo Freire nos oferece o par dialético anúncio-denúncia[xxiv], indicando que este ocupa importante tarefa no processo educativo. A denúncia da estrutura desumanizante, de processos que são contra a vida não poderia ser feita sem a prática e o desenvolvimento de anúncios que visam a transformação dessa mesma vida. É preciso salientar que o que se estabelece atualmente, envolvendo tanto a divulgação científica como as notícias de um modo geral, é uma discussão de valores que reúne tanto a defesa do altruísmo, como também elementos relacionados à uma abertura à mudança e à novidade em oposição aos conservadorismosxii.

Falar do enfrentamento à desinformação passa a ser também falar sobre valores, sistemas de crenças, suas fontes e práticas. O papel da confiança e de como os grupos orgânicos possuem destacada importância para a sua disseminação é outro ponto que deve ser considerado. É preciso salientar que a questão passa muito mais por uma questão de fé do que de evidências; por valores do que fatos. Nesse sentido, o que os autores citados afirmam é que prenunciar seria mais efetivo do que denunciar as fake news. Prenunciar tem relação com previsão, antecipar por meio de indícios. O termo auxilia a se pensar no que pode ser a divulgação científica, como também como pode se configurar o enfretamento à desinformação feita por jornalistas, profissionais de saúde, cientistas, pesquisadores e educadores.

Ao se adotar a prática de prenunciar há também o interessante componente de profecia nessa prática. De assumir a possibilidade de um anúncio que apresenta aquilo que ainda não aconteceu. Essa predição é central para a corrida que hoje enfrentamos na busca de uma sociedade que esteja mais preparada para lidar com o volume de informações a que temos acesso e que estão ao alcance de nossas mãos. Assim, prenunciar também é uma oportunidade para se fazer frente a infodemia que, devido a interesses variados, acumula componentes do negacionismo científico e traz preocupantes consequências, tanto às pessoas como às nações.

É importante ouvir Paulo Freire quando ele afirma que o papel da Universidade passa por processos e práticas que envolvem um “esforço de desocultar verdades e sublinhar bonitezas”. A checagem de notícias e a divulgação científica podem encontrar nos processos das buscar por prenunciar discursos mentirosos uma resposta mais adequada para o enfrentamento à desinformação do que a denúncia posterior. Ao assumir esse papel que é profético, que é de denúncia-anúncio, é possível estabelecer, como continua Freire, uma práxis que “une, em lugar de afastar, como antagônicas, a formação científica com a artística. O estético, o ético, o político não podem estar ausentes nem da formação nem da prática científica”[xxv]. E eu acrescento, nem da divulgação científica nem da checagem de notícias.

Alexandre Brasil Fonseca é sociólogo, professor associado da Universidade Federal do Rio de Janeiro e diretor do Instituto Nutes de Educação em Ciências e Saúde (NUTES-UFRJ). Coordena a pesquisa “Valores e argumentos na disseminação da desinformação: uma aproximação dialógica”, projeto vencedor do Prêmio de Pesquisa WhatsApp para Ciências Sociais e Desinformação promovido pelo Facebook Inc.

[i] Srnicek, N. Platform Capitalism. Cambridge: Polity Press, 2017.

[ii] Zuboff, S. The Age of Surveillance Capitalism. Londres: PublicAffairs, 2019.

[iii] https://super.abril.com.br/ciencia/quanto-vale-um-petabyte/

[iv] https://www.loc.gov/programs/digital-collections-management/about-this-program/frequently-asked-questions

[v] Bontcheva, K.; Posetti, J. Disinfodemic: deciphering Covid-19 disinformation. Paris: UNESCO, 2020. Disponível em: https://en.unesco.org/sites/default/files/disinfodemic_deciphering_covid19_disinformation.pdf

[vi] van der Linden, S., Roozenbeek, J., Oosterwoud, R., Compton, J. A., & Lewandowsky, S. The Science of Prebunking: Inoculating the Public Against Fake News. In Written evidence submitted to the Parliamentary Inquiry on Fake News, 2018. Disponível em: http://data.parliament.uk/writtenevidence/committeeevidence.svc/evidencedocument/digitalculture-media-and-sport-committee/fake-news/written/79482.htm

[vii] Nyhan, B., & Reifler, J. When corrections fail: The persistence of political misperceptions. Political Behavior, 32(2), 2010: 303–330

[viii] Freire, P. Conscientização: teoria e prática da libertação. São Paulo: Cortez, 1979.

[ix] Lewandowsky, S., Ecker, U., & Cook, J. (2017). Beyond misinformation: Understanding and coping with the post-truth era. Journal of Applied Research in Memory and Cognition, 6(4), 353–369

[x] Cook, J.; Lewandowsky, S. The debunking handbook. St. Lucia, Australia: University of Queensland, 2011.

[xi] Vraga, E. K., Kim, S. C., Cook, J., & Bode, L. Testing the Effectiveness of Correction Placement and Type on Instagram. The International Journal of Press/Politics, 2020

[xii] Dietz, T. Bringing values and deliberation to science communication. Proceedings of the National Academy of Sciences of the United States of America, 110(3), 2013:14081–14087. doi:10.1073/pnas.1212740110

[xiii] Zollo F, Bessi A, Del Vicario M, Scala A, Caldarelli G, et al. Debunking in a world of tribes. PLOS ONE 12(7), 2017

[xiv] Schwartz S.H. Studying values: Personal adventure, future directions. J Cross Cult Psychol 42(2), 2011:307–319

[xv] McGuire, W. J. The effectiveness of supportive and refutational defenses in immunizing and restoring beliefs against persuasion. Sociometry, 24, 1961:184-197

[xvi] Cook J. Countering Climate Science Denial and Communicating Scientific Consensus. Oxford Encyclopedia of Climate Change Communication; London: Oxford University Press, 2016

[xvii] Roozenbeek, J.; van der Linden, S. The fake news game: actively inoculating against the risk of misinformation, Journal of Risk Research, 22:5, 2019: 570-580, DOI: 10.1080/13669877.2018.1443491

[xviii] Bolsen, T.; Druckman, J. N. Counteracting the Politicization of Science. Journal of Communication, 65(5), 2015:745–769. Compton, J.; Ivanov, B. Vaccinating voters: New directions for political campaign inoculation scholarship. In E. L. Cohen (Ed.), Communication Yearbook 37, 2013:250-283

[xix] Roozenbeek, J.; van der Linden, S.; Nygren, T. Prebunking interventions based on the psychological theory of “inoculation” can reduce susceptibility to misinformation across cultures. The Harvard Kennedy School (HKS), Misinformation Review, Volume 1, Issue 2, 2020

[xx] Cook, J. Closing the “consensus gap” by communicating the scientific consensus on climate change and countering misinformation. Tese de Doutorado [Filosofia], University of Western Australia, 2016

[xxi] van der Linden, S., Maibach, E., Cook, J., Leiserowitz, A.; Lewandowsky, S. Inoculating against misinformation. Science, 358 (6367), 2017:1141-1142. https://doi.org/10.1126/science.aar4533

[xxii] van der Linden, S., Leiserowitz, A., Rosenthal, S.; Maibach, E. Inoculating the public against misinformation about climate change. Global Challenges, 1, 2017

[xxiii] Ecker, U. Why rebuttals may not work: the psychology of misinformation, Media Asia, 44:2, 2017:79-87, DOI: 10.1080/01296612.2017.1384145

[xxiv] Agradeço à professora Juliana Dias pelas conversas e trocas no caminho de pensar o prenúncio como parte da dialógica de comunicação anúncio-denúncia de Freire.

[xxv] Freire, P. Política e educação: ensaios. São Paulo, Cortez, 2001:53

Equipe NUJOC

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